A transvaloração de todos os valores e o arquétipo do guerreiro



Nietzsche, ao atacar os valores cristãos e a moral estabelecida, abre caminho para o nada, ou seja, para a isenção de valores e niilismo, ou há outros valores alternativos dentro da filosofia Nietzschiana?

As concepções filosóficas de Nietzsche costumam ser falsamente acusadas de propagar o imoralismo, o niilismo, e o imperativo categórico do "tudo pode". Essa distorção advém do fato de Nietzsche ser um dos maiores críticos da moral cristã. Porém, apesar de aderir uma postura crítica em relação aos valores estabelecidos, não se trata de propagar um niilismo dos valores ao destruir a moral vigente, niilismo do tipo que foi apresentado em diálogo desenvolvido no livro "Irmãos Karamazov", escrito por Dostoiévski, em que diz: "Se deus está morto, então tudo é permitido".

Há pontos de convergência entre essa citação de Dostoiévski e a ideia nietzschiana de "deus está morto" — ambos esvaziam os valores que eram atribuídos a Deus, valores estes que serviam como norteadores morais da conduta humana. A diferença é que Nietzsche não cai no niilismo, tampouco cai na isenção total de valores, e na moral do "tudo pode". Nietzsche vai além, ultrapassa a fronteira do niilismo e busca estimular a criação de novos valores para ocupar o lugar dos antigos, valores estes que servem pra restabelecer os princípios de força, altivez, amor próprio, elevação do próprio ser, vontade de potência dissociada de paliativos extraterrenos, afirmação da vida, superação de si, etc. Esses valores revigorantes são diferentes em relação ao menosprezo individual que se dá através da moral da humildade preconizada pelo cristianismo, moral das "vacas perfeitas", da passividade em relação ao inimigo, "do dar a outra face aos que subjugam", do altruísmo em detrimento dos próprios interesses, etc.

Nietzsche é categórico em relação ao niilismo e sem dúvida foi o maior crítico dessa postura, sendo que no que tange a desvalorização aderida pelo niilismo, Nietzsche afirma em Vontade de Potência que "qualquer valor é melhor que nenhum valor".

Se a filosofia nietzschiana é contrária a moral cristã e contrária ao niilismo, então quais são os valores e a postura concernentes a tal posicionamento filosófico?

É preciso ponderar que a intenção de realizar uma transvaloração de todos os valores não foi totalmente concebida por Nietzsche. Havia interesse em realizá-la, contudo, não foi possível concretizar tal obra devido a uma doença que o pensador contraiu, causando-lhe um problema neurológico que incapacitou-o de continuar a exercer suas atividades intelectuais. Todavia, é possível identificar vestígios rudimentares do que seriam tais valores.

Na obra Vontade de potência, p.47, Nietzsche dá mostras de quais seriam as características do além-homem através de uma análise dos ideais que a moral cristã tenta suprimir, ideais característicos dos espíritos fortes e vigorosos: "Quais são os valores negados pelo ideal cristão? Que contém o ideal contrário? Altivez, "pathos" da distância, grande responsabilidade, exuberância, soberba animalidade, instintos guerreiros e conquistadores, apoteose da paixão, da vingança, da astúcia, da cólera, da voluptuosidade, do espírito aventureiro, do conhecimento. Nega o ideal nobre: a beleza, a sabedoria, o poder, o esplendor, o caráter perigoso do tipo homem, o homem que determina seus fins, o homem do futuro."

Ora, essas características foram negadas pelo ideal cristão, são a antítese desse ideal. Nietzsche consegue identificar tal supressão e restaura esses valores que afirmam o tipo forte que busca engrandecer-se e afirmar a vida em seu mais alto grau.

Como se vê não se trata de um niilismo, pois há um direcionamento para determinados valores, e quando se trata da transvaloração que não foi totalmente concebida, parece que essas são características que se direcionam para a transvaloração.

Outro ponto é a respeito de valores que ao não serem aderidos poderiam ser socialmente prejudiciais, quanto a eles, Nietzsche em a vontade de potência analisa a questão da honestidade:

“Levantaríamos dúvidas a respeito de um homem se víssemos que ele tem necessidade de razões para permanecer honesto: É certo que evitaríamos manter contato com ele. Esta pequena palavra "porquê" compromete em certos casos; basta até algumas vezes um único "porquê" para refutar. Se aprendemos, depois, que um tal aspirante à virtude tem necessidade de más razões para permanecer respeitável, não é isso que nos levará a aumentar por ele nosso respeito. Mas ele vai mais longe ainda, vem a nós e nos diz em pleno rosto : “__ Turvais minha moralidade com a vossa má fé, cavalheiro incrédulo; assim, quando não acreditais nos meus maus argumentos, quero dizer, em Deus, em outro mundo ou punição, no livre arbítrio, colocais obstáculos a minha virtude....” Hoje acolhemos com leve ironia toda pretensão de querer fixar a condição do homem; temos em mente que, apesar de tudo, só nos tornamos aquilo que já somos (apesar de tudo, quero dizer, da educação, da instrução, do ambiente, do acaso dos acidentes). Convertemo-nos em homens honestos porque somos honestos.”

Desse modo, expõem-se que o valor da honestidade não necessita de justificações, nem "porquês". Nessa perspectiva isenta de subterfúgios, o valor da honestidade não é praticado por medo das punições divinas, ou por medo das punições morais do rebanho, mas sim por fazer parte de uma característica constitutiva do ser que o pratica. Não se trata de uma mera representação, ou de uma simulação feita para-o-outro, mas sim para-si e em-si, sendo algo que faz parte da essência de determinado ser.

O valor da honestidade, ou qualquer outro, quando é realizado por uma convenção alicerçada em justificações que estão para-além do ser, seriam apenas simulações de personalidade, representações que não condizem com a essência real do ser, pois não são feitas para-si e em-si, mas sim para-o-outro. Quando é feito apenas para-o-outro, e não para-si e em-si, o valor não pertence ao ser, pertence a uma esfera transcendente que está para-além-de-si. Quando são exercidos para-si e em-si, isentos de qualquer justificação moral ou divina, não precisando dar razões e "porquês", tal característica de valor passa a ser constitutiva da essência do ser.

Dito isso, está evidente que no que diz respeito aos valores, é extremamente questionável quando se considera que há uma perspectiva niilista dentro da filosofia de Nietzsche, pois ao restituir os valores para o "ser" e não para "objetos transcendentes", Nietzsche abre fronteiras para novas formações de valores que afirmam a vida em seu mais alto grau, demonstrando a possibilidade do ser humano de criar livremente valores que afirmam a vida — não abre caminho para o "nada".

A desmistificação da estrutura doutrinária de valores transcendentes, demonstra que é o ser humano que cria valores, portanto, pode moldá-los da forma que quiser. Isso acaba libertando a criação de valores, livrando-as das esferas transcendentais que estão para além-de-si.

Todos os valores são invenções e criações humanas, não se trata de algo provindo do além ou de "verdades universais". A origem desses valores era entendida como algo provindo de estruturas que estão para-além do humano, mas Nietzsche destruiu esse mito demonstrando que todos os valores partem e emanam do ser humano, logo, o ser humano pode criar valores da forma que lhe convir, de preferência valores que intensifiquem e estimulem a vontade de potência, a força, e a afirmação da vida — o cristianismo é a antítese disso, pois situa a vida verdadeira em um “além-túmulo”.

O caminho para a transvaloração de todos os valores, apesar de Nietzsche ter apenas começado a abri-lo, vai em direção ao arquétipo do guerreiro. Esses valores que enobrecem o ser humano, tornando-o mais forte e com maior vigor, foram expostos por Nietzsche, mas outros valores que seguem nessa direção poderão ser criados pelos que ousarem superar o niilismo e a tábua moral cristã.

Em meio a decadência da pós-modernidade, torna-se fundamental se insurgir contra o atual estado de coisas, seja criando valores novos, reavivando os da antiguidade, ou através de um ataque voraz contra tudo que amesquinha, enfraquece, e apequena a existência e o ser humano. A tarefa de superação da pós-modernidade é árdua, mas está a altura dos que perceberam o tamanho da fossa atual.

Que toda nobreza, vigor, coragem, bravura, frescor, e todos instintos apoteóticos sejam restituídos para o ser humano e para a existência: Que essa seja a meta de todos os que estão acima do período atual, de todos os que se distanciaram da decadência estabelecida pela torpeza e esquizofrenia pós-moderna — de todos os que iniciarão uma nova era dourada.

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